
φundamentalia
Condicionais
por philosdaemon, atualizado em dom 09 fev 2025 19:39.
Não costumo ser impelido a escrever. Muito menos na manhã preguiçosa de um domingo. Pior ainda se for por conta de comentários na internet. Encontrei hoje um motivo. Não sei se bom. Lógico, por assim dizer.
Giovana Madalosso publicou hoje (09/02/2025) na Folha de São Paulo um texto intitulado Quero escrever um poema sujo. Nesse texto a escritora reflete sobre sua ânsia por produzir algo comparável ao Poema Sujo do poeta Ferreira Gullar. As motivações para tanto constituem o cerne do seu texto. Considerando que meu objetivo não é crítica literária do que foi publicado em si, vou deixar de lado os detalhes sobre o conteúdo. Meu interesse diz respeito a dois comentários feitos à primeira linha do texto.
Madalosso inicia Quero escrever um poema sujo com a seguinte frase:
Se pensarmos que o tempo também é uma nação, sou conterrânea do “Poema Sujo” de Ferreira Gullar.
Um dos comentários, não sei ao certo se por minimalismo linguístico, preguiça ou ironia proposital dizia: “conterranea?” (sic). O outro comentário, um pouco menos econômico na quantidade de palavras e explícito quanto a ironia, dizia: “Acho q a moça esta mesmo aturdida, quis dizer contemporanea” (sic). Madalosso quis dizer exatamente aquilo que escreveu na introdução do seu texto. Escrevo isso não como uma defesa da autora ou da qualidade do seu texto. Na verdade, o impulso que me levou a escrever não é tão nobre. Encontrei aqui uma oportunidade para falar sobre lógica.
A frase com que Madalosso inicia seu texto é o que do ponto de vista lógico se chama de afirmação condicional e tem a forma “Se A, então C”. Suponho que cada professor de lógica deva ter sua lista de tópicos difíceis de explicar aos iniciantes, mas arrisco dizer que explicar a semântica das condicionais seja uma unanimidade. De todo modo, há duas coisas simples que precisam ser entendidas sobre as condicionais e que têm relação direta com os comentários acima.
A primeira coisa a se aprender sobre as condicionais é a sua composição, ou seja, o modo como elas são construídas. Nas condicionais do tipo “Se A, então C”, “A” é o antecedente e “C” o consequente; “A” e “C” são combinadas por meio de “Se…, então …”. Assim, a afirmação condicional “Se Messi é um jogador de futebol profissional, então Messi recebe um salário” tem como antecedente “Messi é um jogador de futebol profissional” e como consequente “Messi recebe um salário”. A frase “Se pensarmos que o tempo também é uma nação, sou conterrânea do Poema Sujo de Ferreira Gullar” é uma condicional tendo, de forma simplificada, “Pensamos que o tempo é uma nação” como antecedente e “Sou conterrânea do Poema Sujo de Ferreira Gullar” como consequente.
Outra coisa simples sobre as condicionais diz respeito ao tipo de asserção que alguém faz ao usá-las. Condicionais são compostas por frases a partir da combinação da expressão “Se…, então…”. Assim, “Se Messi é uma lata de refrigerante, então Messi é feito de metal” é uma afirmação condicional legítima e, mais que isso, verdadeira. Aqui costuma aparecer o espantado “como assim?”. “Como pode?” a reclamação continua, “Messi é um jogador de futebol e ele não é feito de metal!”. De fato, quem faz esse tipo de reclamação não está equivocado em suas justificativas, apenas erra o alvo. Ao usar a forma condicional não se pretende afirmar que Messi é uma lata e que Messi é de metal. Afirmar “Se A, então C” não compromete ninguém com a verdade de A ou C. Em outras palavras, ao afirmar condicionais você não se compromete com a verdade das frases componentes. O propósito de afirmações condicionais é expressar, do ponto de vista lógico, a relação de implicação material entre antecedente e consequente. “A implica materialmente B” equivale a dizer que “Não é o caso que A é verdadeira e B é falsa”. Desse modo, se Messi for uma lata de refrigerante, não estamos dizendo que ele é, mas se for, então ná há como não ser de metal.
Com essas explicações talvez fique claro o que há de errado com os comentários que mencionei acima e que me impeliram a escrever esse texto. Quando Giovana Madalosso diz que “Se pensarmos que o tempo também é uma nação, sou conterrânea do “Poema Sujo” de Ferreira Gullar”, ela não está afirmando que o tempo é uma nação ou que ela é, de fato, conterrânea do poema. Isso certamente seria um uso inadequado dos conceitos, um erro evidente. Entretanto, a autora não pode ser acusada de ter cometido esse erro. A frase inicial é uma afirmação condicional. Atribuir compromisso com a verdade do consequente dessa condicional é não entender o que está sendo dito. O que acaba se tornado o irônico do irônico já que os comentários pretendiam corrigir a autora apelando para o que ela deveria ter escrito para dizer o que queria dizer. É bastante claro o que ela pretende com a frase inicial. Não pode ser o caso que é verdade que o tempo é uma nação mas é falso que as pessoas que nele habitam não sejam conterrâneas. Se o tempo for uma nação. Implicação material!
É claro também que os leitores do texto de Medalosso podem criticar os méritos literários da metáfora do tempo-nação e justificar suas preferências pelo tempo-tempo. Sobre isso a lógica não dirá nada. Muito menos eu. Esse silêncio, no entanto, é o menor dos problemas aqui. Problema mesmo é o que autora vai encontrar ao continuar a leitura da seção de comentários da sua publicação na Folha.
Se a lógica é uma nação, as pessoas podem visitá-la de vez em quando.